terça-feira, 19 de novembro de 2013

A caverna de Clarice - uma novela em muitos capítulos


 

Essa é uma obra de ficção. Semelhanças com minha vida não são mera coincidência.

 
I


A poeta anda confusa... Com tudo... Quase todos... Fazia tempo que não sentia esse desânimo com a superfície do mundo. Vinha trafegando por ela como alguém que no início teve que tomar um remédio amargo e aos poucos até passou a achar gosto belo.  Saia... Pintava os lábios, voltou a sonhar com abraços... Se perguntada, deitada na cama, olhando o teto, não saberia dizer a hora exata em que o mel virou fel. Ela abre a janela do quarto... O céu é de um azul que venta.  Escreve um bilhete pra filha: tem macarrão no forno, te amo. Fecha os olhos e se dirige para a caverna. Sabe que estocou pensamentos para muitas vidas.  Abre a porta, nenhum cômodo está empoeirado e lentamente hiberna...

18/11/2013
 
 
II
 

A caverna tem uma luz natural que vem do teto. Uma pequena abertura que lhe permite folhear lembranças. A sala das recordações não tem cheiro de mofo. Ela senta e com as mãos desenha o passado no ar.  Se vê, saia longa, tranças, em meio a um grupo de amigos que gritavam em alto falantes, pedindo as diretas já... 1º de junho de 1984...
Era dia do seu aniversário. Não sonhava festa melhor... “Um dia é do caçador... o outro é da caçarola... Abre a janela... bate panela”... Lembra que imaginava como seria doce votar. Ela sonha com um país socialista... Muitos amigos em Cuba... Alguns em guerrilhas... Os quadros da memória pulam sem sequencias. Lembra-se da decepção e da espera... Mais cinco anos para estar frente às urnas... Ela tremia... O gosto de escrever o nome do homem que nunca seria eleito, Roberto Freire, e que depois, como outros que viriam, a decepcionaria... Por um tempo fica imaginando porque, entre tantas memórias, essas foram as que vieram primeiro...
Não se importa, sabe que voltará a esse cômodo e se prepara para ir à sala das dores...
     
 
19/11/2013  
            


III


Enquanto caminha, percebe que já escureceu. A luz que vinha do teto foi substituida por pequenas estrelas.  Sabe que lá fora um dia se passou e tenta imaginar motivos para voltar. A filha está viajando, ela lembra, e mergulha mais fundo na caverna. Pensa ter ouvido uma voz, mas não, estava distante... Talvez em outro tempo.
Os corredores estão lotados. É uma bagunça que agrada aos olhos.  Lembra-se da última vez que esteve aqui, não havia tantos desenhos, fotos, versos, rabiscos, espalhados pelo chão. Ela encontra uma caderneta com os nomes que gostaria de ter tido. Folheia. Escolhe o primeiro, mastiga. O papel tem o gosto do giz que ela costumava comer na escola até um dia, vomitar... Na caverna será Clarice.
Decide abrir as portas dos cômodos e derrubar as paredes. Não há mais separação entre os sentimentos...

 
20/11/2013


 

IV

 
O chão da caverna não é liso. Agora, sem as paredes que separavam emoções, Clarice percebe a imensidão.  Minha terra do nunca, ela ri... Um riso que some ao perceber que lá dentro, coisas envelheciam... O gosto do papel engolido, com seu novo nome, agora adquiriu um sabor metálico. Sentada ela revira desenhos. Alguns se desfazem em seus dedos... Estão velhos, muito velhos... Clarice fecha os olhos já fechados e vomita. Seu corpo treme, esperava a eternidade no abrigo... Um pequeno desenho resiste ao seu toque... 1982... Lembra... Foi quando conheceu o homem que seria seu marido e que por 27 anos dividiria a viagem.  O desenho, um nanquim aquarelado onde o casal, traço infantil, está sentado num tronco... Cabeças juntas, olhando a cachoeira... Tororó, ela diz em voz alta e o eco que volta é grave... A memória do tempo com esse homem é feita mais de estrada do que cama. On the roads eram os dias... Clarice não sabe, mas aquele que está escondido nas sombras vê seu rosto brilhar. Na hora certa, talvez ele se apresente.  Ela decide ficar mais um dia...
Encosta a cabeça na almofada que um dia bordou e sonha que dorme...
 
 
21/11/2013
 
 

V
 

Quando acorda, pensa em  fazer o café forte de toda manhã. Leva alguns segundos para lembrar onde está. Terá café na caverna?  Clarice não sabe quanto tempo se passou, mas as pequenas estrelas foram substituidas por fiapos de luz que agora formam desenhos no chão craquelento.  Procura os cigarros no bolso, o que veste é uma camisola azul... Sem cigarros não dá... Lamento baby, mas sem eles interrompo a viagem... ri. Ela se lembra de quando começou a fumar e de como uma vez tentou parar... Conseguiu e também conseguiu ficar quase um ano sem escrever o que quase a matou, de tédio e desânimo.  Encontra os cigarros numa estante de madeira, acende com alívio.  Decidi fazer uma caminhada, explorar a caverna que agora está modificada sem as paredes que separavam os comôdos. Não se lembrava de como era imensa...

Resolve trocar de roupa, apesar de achar que estava sozinha na caverna que tinha criado... Encontra uma calça de moleton azul, uma camiseta azul e o tênis velho de camurça. Está pronta para a exploração.  Em algum ponto de sua mente passa a lembrança de que tinha planejado despertar na cama. Que dia será hoje? De repente não se importa mais, reencontrou sua caverna, sua caverna e sabe que precisa continuar. Começa a caminhar e quase tropeça na garrafa.  O que a fez não derrubar a garrafa quente de um café novo, foi a voz que ouviu....de longe...muito longe... Mas ela entendeu as palavras – Bem vinda de volta –

Sente um calafrio, abaixa, vê o bilhete. “Um café forte pra sua jornada" A letra não era sua, não... não mesmo... De repente ela sabe que não está sozinha...
 
23/11/2013


VI

 

A letra do bilhete lembra caracteres dos péssimos filmes, baseados na obra do Sthepen King. Clarice era poeta, não escreveria obras longas...não...não senhor, gostava dos escritos concisos, mas Stehepen King? Esse era mestre, a acompanhou em muitas entediantes viagens de carro e ônibus. “IT”, o que ela mais gostava, havido lido e relido.  Sim, a letra no bilhete tinha uma escrita curva, sombria...Não era sua, não mesmo. Pensou se um dia teria tentado imitar esas letras, fizera tantas coisas, mas não...quando começou a escrever já foi logo pra máquina, a primeira uma vermelha, ela não gravou o nome, ainda a tem, talvez em algum canto da caverna e sua querida, uma preta praxis 20, adorava a letra courier. Aquele bilhete era escrito a mão, ainda tinha cheiro de tinta. Ela o tocou, estava úmido. Quem ou o que o tivesse escrito não poderia estar muito longe. Clarice sentiu arrepios... Como assim? É minha caverna...minha. Nunca ninguém esteve aqui comigo e fui eu que a criei...
Por instantes ela sente uma onda de terror e então se lembra de que é só acordar e estará na cama, sua cama quentinha, seu cobertor, a filha que deve chegar de viagem, seu projeto para o próximo livro...sim...é só acordar... Então ela tenta... Fecha os olhos e diz em voz alta: quero estar na cama...sente um vento frio...abre os olhos e continua na caverna. Um momento de puro terror a invade. Tenta de novo, dessa vez com mais firmeza, mais séria... Toca o chão , ainda é craquelento. Então ela chora... Estou presa dentro de mim, diz e o som dessas palavras a faz rir. Quem foi o maluco que disse que a loucura se desfaz no exercício da razão, Bertrand Russel, talvez... Ela decide que só está nervosa, só muito nervosa... Abre a garrafa de café, enche uma chícara com desenho de coruja e se prepara para beber.
 
25/11/2013
 

Nenhum comentário:

Postar um comentário