Essa é uma obra de ficção. Semelhanças com minha vida não são mera coincidência.
I
A poeta anda
confusa... Com tudo... Quase todos... Fazia tempo que não sentia esse desânimo
com a superfície do mundo. Vinha trafegando por ela como alguém que no início
teve que tomar um remédio amargo e aos poucos até passou a achar gosto
belo. Saia... Pintava os lábios, voltou
a sonhar com abraços... Se perguntada, deitada na cama, olhando o teto, não
saberia dizer a hora exata em que o mel virou fel. Ela abre a janela do
quarto... O céu é de um azul que venta.
Escreve um bilhete pra filha: tem macarrão no forno, te amo. Fecha os
olhos e se dirige para a caverna. Sabe que estocou pensamentos para muitas
vidas. Abre a porta, nenhum cômodo está
empoeirado e lentamente hiberna...
18/11/2013
II
A caverna tem
uma luz natural que vem do teto. Uma pequena abertura que lhe permite folhear
lembranças. A sala das recordações não tem cheiro de mofo. Ela senta e com as
mãos desenha o passado no ar. Se vê,
saia longa, tranças, em meio a um grupo de amigos que gritavam em alto
falantes, pedindo as diretas já... 1º de junho de 1984...
Era dia do seu
aniversário. Não sonhava festa melhor... “Um dia é do caçador... o outro é da
caçarola... Abre a janela... bate panela”... Lembra que imaginava como seria
doce votar. Ela sonha com um país socialista... Muitos amigos em Cuba... Alguns
em guerrilhas... Os quadros da memória pulam sem sequencias. Lembra-se da
decepção e da espera... Mais cinco anos para estar frente às urnas... Ela tremia...
O gosto de escrever o nome do homem que nunca seria eleito, Roberto Freire, e
que depois, como outros que viriam, a decepcionaria... Por um tempo fica
imaginando porque, entre tantas memórias, essas foram as que vieram primeiro...
Não se
importa, sabe que voltará a esse cômodo e se prepara para ir à sala das dores...
19/11/2013
III
Enquanto caminha,
percebe que já escureceu. A luz que vinha do teto foi substituida por pequenas
estrelas. Sabe que lá fora um dia se
passou e tenta imaginar motivos para voltar. A filha está viajando, ela lembra,
e mergulha mais fundo na caverna. Pensa ter ouvido uma voz, mas não, estava
distante... Talvez em outro tempo.
Os corredores
estão lotados. É uma bagunça que agrada aos olhos. Lembra-se da última vez que esteve aqui, não havia
tantos desenhos, fotos, versos, rabiscos, espalhados pelo chão. Ela encontra
uma caderneta com os nomes que gostaria de ter tido. Folheia. Escolhe o
primeiro, mastiga. O papel tem o gosto do giz que ela costumava comer na escola
até um dia, vomitar... Na caverna será Clarice.
Decide abrir as
portas dos cômodos e derrubar as paredes. Não há mais separação entre os
sentimentos...
20/11/2013
IV
O chão da caverna não é liso. Agora, sem as paredes que separavam emoções,
Clarice percebe a imensidão. Minha terra
do nunca, ela ri... Um riso que some ao perceber que lá dentro, coisas envelheciam...
O gosto do papel engolido, com seu novo nome, agora adquiriu um sabor metálico.
Sentada ela revira desenhos. Alguns se desfazem em seus dedos... Estão velhos,
muito velhos... Clarice fecha os olhos já fechados e vomita. Seu corpo treme,
esperava a eternidade no abrigo... Um pequeno desenho resiste ao seu toque... 1982...
Lembra... Foi quando conheceu o homem que seria seu marido e que por 27 anos
dividiria a viagem. O desenho, um
nanquim aquarelado onde o casal, traço infantil, está sentado num tronco... Cabeças
juntas, olhando a cachoeira... Tororó, ela diz em voz alta e o eco que volta é
grave... A memória do tempo com esse homem é feita mais de estrada do que cama.
On the roads eram os dias... Clarice não sabe, mas aquele que está escondido
nas sombras vê seu rosto brilhar. Na hora certa, talvez ele se apresente. Ela decide ficar mais um dia...
Encosta a cabeça na almofada que um dia bordou e sonha que dorme...
21/11/2013
V
Quando acorda, pensa em fazer o café forte de toda manhã. Leva alguns
segundos para lembrar onde está. Terá café na caverna? Clarice não sabe quanto tempo se passou, mas
as pequenas estrelas foram substituidas por fiapos de luz que agora formam
desenhos no chão craquelento. Procura os
cigarros no bolso, o que veste é uma camisola azul... Sem cigarros não dá...
Lamento baby, mas sem eles interrompo a viagem... ri. Ela se lembra de quando
começou a fumar e de como uma vez tentou parar... Conseguiu e também conseguiu
ficar quase um ano sem escrever o que quase a matou, de tédio e desânimo. Encontra os cigarros numa estante de madeira,
acende com alívio. Decidi fazer uma
caminhada, explorar a caverna que agora está modificada sem as paredes que
separavam os comôdos. Não se lembrava de como era imensa...
Resolve trocar de roupa, apesar de achar que estava sozinha na caverna que
tinha criado... Encontra uma calça de moleton azul, uma camiseta azul e o tênis
velho de camurça. Está pronta para a exploração. Em algum ponto de sua mente passa a lembrança
de que tinha planejado despertar na cama. Que dia será hoje? De repente não se
importa mais, reencontrou sua caverna, sua caverna e sabe que precisa
continuar. Começa a caminhar e quase tropeça na garrafa. O que a fez não derrubar a garrafa quente de
um café novo, foi a voz que ouviu....de longe...muito longe... Mas ela entendeu
as palavras – Bem vinda de volta –
Sente um calafrio, abaixa, vê o bilhete. “Um café forte pra sua
jornada" A letra não era sua, não... não mesmo... De repente ela sabe que
não está sozinha...
23/11/2013
VI
A letra do bilhete lembra caracteres dos péssimos filmes, baseados na obra
do Sthepen King. Clarice era poeta, não escreveria obras longas...não...não
senhor, gostava dos escritos concisos, mas Stehepen King? Esse era mestre, a
acompanhou em muitas entediantes viagens de carro e ônibus. “IT”, o que ela
mais gostava, havido lido e relido. Sim,
a letra no bilhete tinha uma escrita curva, sombria...Não era sua, não mesmo.
Pensou se um dia teria tentado imitar esas letras, fizera tantas coisas, mas
não...quando começou a escrever já foi logo pra máquina, a primeira uma
vermelha, ela não gravou o nome, ainda a tem, talvez em algum canto da caverna
e sua querida, uma preta praxis 20, adorava a letra courier. Aquele bilhete era
escrito a mão, ainda tinha cheiro de tinta. Ela o tocou, estava úmido. Quem ou
o que o tivesse escrito não poderia estar muito longe. Clarice sentiu
arrepios... Como assim? É minha caverna...minha. Nunca ninguém esteve aqui
comigo e fui eu que a criei...
Por instantes ela sente uma onda de terror e então se lembra de que é só
acordar e estará na cama, sua cama quentinha, seu cobertor, a filha que deve
chegar de viagem, seu projeto para o próximo livro...sim...é só acordar...
Então ela tenta... Fecha os olhos e diz em voz alta: quero estar na
cama...sente um vento frio...abre os olhos e continua na caverna. Um momento de
puro terror a invade. Tenta de novo, dessa vez com mais firmeza, mais séria...
Toca o chão , ainda é craquelento. Então ela chora... Estou presa dentro de
mim, diz e o som dessas palavras a faz rir. Quem foi o maluco que disse que a
loucura se desfaz no exercício da razão, Bertrand Russel, talvez... Ela decide
que só está nervosa, só muito nervosa... Abre a garrafa de café, enche uma
chícara com desenho de coruja e se prepara para beber.
25/11/2013